quinta-feira, 3 de março de 2011

um mundo do ossevA !

...convencida como eu de que um encontro casual era a menor casualidade das nossas vidas e que as pessoas que marcam encontros a horas precisas são as mesmas que necessitam de papel pautado para escreverem ou que apertam o tubo da pasta de dentes desde o fundo...

...andávamos sem nos procurarmos, mas sabendo que andávamos para nos encontrarmos...

...mais tarde acreditei em ti, mais tarde houve razões para isso, houve madame Léonie que, ao ler a mão que tinha dormido sobre os teus seios, quase repetiu as tuas palavras. "Ela sofre algures, sempre sofreu. É muito alegre, adora o amarelo, o seu pássaro é o melro, a sua hora é a noite, a sua ponte a Pont des Arts."...

...ainda mal nos conhecíamos e a vida urdia o necessário para nos desencontrar minuciosamente...

...num mundo-Maga que era a falta de jeito e a confusão...

...e íamos de bicicleta para Montparnasse, para qualquer hotel, para qualquer almofada...

...tinha falado com a Maga de patafísica até à exaustão, porque a ela também lhe acontecia (e o nosso encontro era isso e tantas coisas obscuras como o fósforo) cair continuamente nas excepções, ver-se metida em contextos que não eram os de toda a gente...

...sei o que isso é porque também obedeço a esses sinais, também há alturas em que me toca a mim encontrar pano vermelho...

...a desordem em que vivíamos, isto é, a ordem segundo a qual um bidé se vai convertendo natural e paulatinamente em arquivo de discos e de correspondência por responder...

...era idiota revoltar-me contra o mundo Maga quando tudo me dizia que assim que recuperasse a minha independência deixaria de sentir-me livre...

...o peso do sujeito na noção de objecto...

...pelo chão ou no tecto, por baixo da cama ou a flutuar numa bacia, havia estrelas e pedaços de eternidade...

...ninguém aguenta aqui muito tempo, nem sequer tu e eu, é preciso lutar para viver, é a lei, é a única maneira que vale a pena mas dói, Rocamadour, e é sujo e amargo, tu não ias gostar...

...sim, existem rios metafísicos, e ela nada neles....

...Ah, deixa-me entrar, deixa-me ver um dia como os teus olhos vêem....


Cortázar

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