segunda-feira, 14 de março de 2011

Poema de Amor para Uso Tópico

Quero-te, como se fosses
a presa indiferente, a mais obscura
das amantes. Quero o teu rosto
de brancos cansaços, as tuas mãos
que hesitam, cada uma das palavras
que sem querer me deste. Quero
que me lembres e esqueças como eu
te lembro e esqueço: num fundo
a preto e branco, despida como
a neve matinal se despe da noite,
fria, luminosa,
voz incerta de rosa. 


Nuno Júdice

quarta-feira, 9 de março de 2011

este não-futuro (al berto)

Será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive? (...) Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. (...) Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros.

Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)"

o que é um romance (al berto)

Um romance é aquilo que o autor quiser que seja. O Herberto Helder tem razão quando diz que está tudo misturado: não se sabe quando é que a poesia não dá origem a um romance, quando é que um ensaio não é um romance, quando é que no interior de um ensaio não aparece um poema… Não vejo por que é que essas coisas hão-de ser catalogadas. Há páginas de grandes romances que são grandes páginas de poesia. Bom, mas isto é mais um pressentimento que uma certeza, que o início de uma teoria… É uma interrogação. O meu problema é que sempre li mais prosa que poesia. Na verdade, a poesia aborrece-me mais. Não é bem isso… é no sentido de que ocupa um espaço muito menor nas minhas leituras. A poesia é assim: abro um livro, leio este poema, leio aquele, depois arrumo, um dia volto…

Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)"

quando morre um homem (ruy belo)

Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

solidão - (rilke)

Solidão
A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira






"Quero implorar-te
Para que sejas paciente
Com tudo o que não está resolvido no teu coração e tentes amar
As perguntas como quartos trancados e como livros escritos em língua estrangeira
Não procures respostas que não podem ser dadas porque não serias capaz de vivê-las
...E a questão é viver tudo
Vive as perguntas agora
Talvez assim, gradualmente, sem perceberes, viverás a resposta num dia distante"

Rainer Maria Rilke

rilke

"Como suportar, como salvar o visível, senão fazendo dele a linguagem da ausência, do invisível?"

quinta-feira, 3 de março de 2011

porque !

•Porque a bondade que nunca repreende não é bondade: é passividade.
•Porque a paciência que nunca se esgota não é paciência: é subserviência.
•Porque a serenidade que nunca se desmancha não é serenidade: é indiferença.
•Porque a tolerância que nunca replica não é tolerância: é imbecilidade.

sonho

"O artista examina minuciosa e cuidadosamente os sonhos, porque sabe descobrir, nessas pinturas, a verdadeira interpretação da vida."


'A Origem da Tragédia'

soulmate

" - (...) Era a minha alma gémea.
- Provavelmente era. O teu problema é não compreenderes o que significam essas palavras. As pessoas pensam que uma alma gémea é o par perfeito e é isso que toda a gente quer. Mas uma verdadeira alma gémea é um espelho, uma pessoa que te mostra tudo aquilo que te retém, a pessoa que faz com que te centres em ti mesma para que possas mudar a tua vida. Uma verdadeira alma gémea é a pessoa mais importante que alguma vez conhecerás porque deita abaixo as tuas defesas e desperta a tua consciência. Mas viver com uma alma gémea para sempre? É demasiado doloroso. As almas gémeas entram na nossa vida para nos revelarem uma outra camada de nós mesmos e depois vão-se embora. E graças a Deus que assim é. O teu problema é que não consegues esquecer esta. Acabou Liz. O objectivo do David era dar-te um abanão, levar-te a abandonar um casamento a que tinhas de pôr fim, destroçar um pouco o teu ego, mostrar-te os teus obstáculos e vícios, abrir-te o coração para que pudesse entrar uma nova luz, deixar-te tão desesperada e descontrolada que tinhas que transformar a tua vida, depois apresentar-te à tua mestre espiritual e pôr-se a andar. Era esta a sua missão e saiu-se lindamente, mas agora acabou. O problema é que não consegues aceitar que essa relação tenha tido uma vida tão curta. (...)
- Mas eu amo-o.
- Então ama-o.
- Mas sinto a falta dele.
- Então sente. Transmite-lhe o teu amor e luz cada vez que pensares nele e depois esquece-o. (...) Deixa-o ir embora."



Elizabeth Gilbert.

temptation

A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu, com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. E é também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo...

Oscar Wilde

happiness

..."Se pudesses ser feliz, verdadeiramente feliz, por pouco tempo, mas soubesses desde o início que essa felicidade terminaria em tristeza e te traria dor, escolherias experimenta-la ou evitá-la-ias?"

in 'Shantaram'

difference

..."Há uma fatalidade em toda a excelência física e intelectual...É melhor não sermos diferentes dos que nos rodeiam. Os feios e estúpidos são os que mais aproveitam do mundo. Podem sentar-se a olhar e bocejar à vontade. Se não têm qualquer noção do que seja a vitória, é-lhes pelo menos poupado o conhecimento da derrota. Vivem como todos nós deveríamos viver, imperturbados, indiferentes e sem inquietações. Nunca causam a desgraça dos outros, nem sequer a recebem das mãos de outrem..."

Oscar Wilde*

mystery

..."Quando gosto muito das pessoas nunca digo a ninguém como se chamam. É como entregar uma parte delas. Aprendi a apreciar a discrição. Parece-me ser a única coisa que pode tornar a vida moderna misteriosa ou maravilhosa aos nossos olhos. A coisa banal pode ser encantadora se a ocultarmos."...

O. Wilde.

shantaram

..."Para ter a certeza que ninguém nos seguia,
usei o cabelo para cobrir o nosso rasto.
O sol pôs-se na ilha da nossa cama,
a noite nasceu evaporando ecos,
e nós encalhamos ali, em caracóis de luz,
as velas sussurrando atrás de nós.
Os teus olhos estavam sobre mim,
receosos das promessas que eu queria manter,
lamentando a verdade que dissemos
menos do que a mentira que calámos.
Eu fui ao fundo, muito fundo,
para lutar contra o passado por ti.
Agora ambos sabemos
que a tristeza é a semente do amor.
Agora ambos sabemos que viverei e
morrerei por este amor"

in 'Shantaram'

on the other side

"Quando considero a brevidade da existência dentro do pequeno parêntese do tempo e reflicto sobre tudo o que está além de mim e depois de mim, enxergo a minha pequenez. Quando considero que, um dia, tombarei no silêncio de um túmulo, tragado pela vastidão da existência, compreendo as minhas extensas limitações e, ao deparar-me com elas, deixo de ser deus e liberto-me para ser apenas um ser humano. Saio da condição de centro do universo para ser apenas um transeunte nas trajectórias que desconheço."


'O vendedor de Sonhos'

vox

.."A sua voz, naquela língua e naquela conversa, era surpreendentemente grave e sonora; os pelos dos meus braços formigaram com aquele som. A voz, (dizem os casamenteiros afegãos) é mais de metade do amor."...


in 'Shantaram'

lovers

..."...Sabia que as pinceladas de cor que ela excluíra deste resumo eram, pelo menos, tão importantes quanto os esboços que incluíra. O diabo, dizem, está nos pormenores, e eu conhecia bem os diabos que espreitavam e se escondiam nos pormenores da minha própria história. Mas ela tinha-me oferecido um monte de novos tesouros. Tinha aprendido mais sobre ela nessa hora exausta, murmurante, que em todos os meses anteriores. Os amantes encontram o seu caminho através destes vislumbres e confidências: são as estrelas que usamos para navegar no oceano de desejo. E as mais luminosas dessas estrelas são as mágoas e as tristezas. O presente mais precioso que podemos dar a um amante é o nosso sofrimento. Por isso, peguei em cada tristeza que ela me confessou, e fixei-a no céu, como uma jóia."...


in'Shantaram'

bodies

"......Na escuridão iluminada pela tempestade, as pérolas de suor e os pingos de chuva no seu braço eram como estrelas brilhando, e a sua pele era como um palmo de céu nocturno. Apertei os lábios contra o céu e lambi as estrelas. Ela conduziu o meu corpo para o seu, e cada gesto foi um encantamento. A nossa respiração era como o mundo inteiro entoando orações. O suor corria em regatos para desfiladeiros de prazer. Sob o manto aveludado da ternura, os nossos corpos abraçaram-se num fogo que fazia tremer, forçando os músculos a concretizar o que a mente desejara. Eu era dela. Ela era minha. O meu corpo era a sua carruagem e ela dirigia-o para o sol. O corpo dela era o meu rio, e eu tornei-me o mar. E o gemido que juntou os nossos lábios, no fim, era o mundo de esperança e dor que extasia os amantes e inunda as suas almas de felicidade.
O silêncio calmo e suave das nossas respirações, depois, estava desprovido de necessidade, de querer, de fome, de dor e de tudo o resto à excepção da pura e inefável perfeição do amor."



Shantaram

a cidade está deserta

"A cidade está deserta,
E alguém escreveu o teu nome em toda a parte:
Nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas.
Em todo o lado essa palavra
Repetida ao expoente da loucura!
Ora amarga! Ora doce!
Pra nos lembrar que o amor é uma doença,
Quando nele julgamos ver a nossa cura!"

Ornatos Violeta

things

'...Mais de dez milhões de pessoas passaram por essas árvores desde que foram plantadas e talvez, no máximo, dez as tenham observado detalhadamente.....'


Augusto Cury

i can't choose

Existem em todo o homem, a todo o momento, duas postulações simultâneas, uma a Deus, outra a Satanás. A invocação a Deus, ou espiritualidade, é um desejo de elevar-se; aquela a Satanás, ou animalidade, é uma alegria de precipitar-se no abismo.


Charles Baudelaire.

nunca amamos ninguém

"Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa."



Fernando Pessoa

adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.



Eugénio de Andrade.

ecce homo

Aquele que sabe respirar a atmosfera dos meus escritos sabe que é uma atmosfera das alturas, que o ar aí é forte. É preciso ser criado para esta atmosfera, de outra forma arriscamo-nos a apanhar frio. O gelo está perto, a solidão é enorme - mas vejam com que tranquilidade tudo repousa na luz! Vejam como se respira livremente!
Quanta coisa sentimos abaixo de nós!
A filosofia tal como a vivi, tal como a compreendi até ao presente, é a existência voluntária no meio dos gelos e das altas montanhas, a pesquisa de tudo o que é estranho e problemático na vida, de tudo o que, até ao presente, foi banido pela moral. Uma longa experiência, que possuo desta viagem dentro de tudo o que é interdito, ensinou-me a olhar, de uma maneira diferente da que seria desejável, as causas que até agora levaram a moralizar e a idealizar. (...)
O grau de verdade que um espírito suporta, a dose de verdade que um espírito pode ousar, foi o que me serviu cada vez mais para dar a verdadeira medida do valor.
O erro não é a cegueira; O erro é a covardia.


Ecce Homo
F. Nietzsche

'...que me saiba perder....p'ra me encontrar.....!'

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui ... Além ....
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi para cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...




Florbela Espanca
Sonetos

não vale a pena !

Ódio por ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto...

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Como um soturno e enorme Campo Santo!

Ah! Nunca mais amá-lo é já bastante!
Quero senti-lo doutra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por ele? Não... não vale a pena...



Florbela Espanca
Sonetos

não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.



Fernando Pessoa

a besta e a loucura

'A Dependência é uma Besta que dá cabo do Desejo.
A Liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um Beijo.'


Jorge Palma

alma

"Alma vem do vocábulo latino 'anima'; o masculino ânimo é o 'animus' (vento, sopro).
A ideia mais primitiva de Alma prende-se com a vida e com o seu princípio: animado ou animal é aquele corpo que se move, respira, tem alento, tem sangue... Enquanto 'anima' significa em geral o princípio da vida, o 'animus' designa em geral o princípio do pensamento, o espírito, o dinamismo do ente animado, a coragem. Os Gregos usam a 'respiração' para significar 'anima' e o 'sangue' para significar o 'animus'.
Simplificando muito podemos reduzir a dois os sentidos globais de Alma: 1) princípio da vida, do pensamento ou de ambos; 2) princípio de inspiração moral.
O primeiro sentido aparece sobretudo nos debates filosóficos e epistemológicos sobre o ser vivo; o segundo é mais usado nas linguagens pré-filosóficas. Enquanto na filosofia a Alma adquire duas valências fundamentais - uma metafísica (a Alma como forma do composto humano ou como espírito) e outra de carácter mais ético (a Alma como 'senhora do corpo') - numa acepção mais ampla ela vem a ser ou a 'sede do psiquismo' ou a 'sede da vida moral'.
A diferença entre 'respiração' (anima) e 'sangue' (animus) já se encontra em Homero: Sangue significa paixão, vontade, espírito e evoca o sangue quente; Respiração, por sua vez, significa vida e evoca o sopro fresco da respiração animal.
O Sangue é então o ânimo propriamente dito e a Respiração é aquilo que faz com que o corpo viva, a 'anima'.
Segundo Homero, a 'respiração' ou vida abandona o vivente no momento da morte. Depois da morte do ser vivo, a Alma é concebida como o 'duplo' do morto, uma espécie de fantasma a ele semelhante, ainda de natureza corpórea e com uma estrutura empírica. Em Homero, como aliás, na mentalidade primitiva, a Alma reveste o duplo significado de 'vida em geral' (no caso dos viventes) e de 'duplo' do defunto (no caso dos mortos). Segundo os primitivos, três notas caracterizam a Alma: 1) a Alma é sopro, alento, hálito (por analogia com o processo de respiração); 2) outras vezes é uma espécie de fogo (por analogia com o calor vital); 3) outras vezes é sombra (por analogia à alma dos fantasmas). Os significados 1 e 2 apresentam-nos a Alma como princípio de vida, enquanto o 3 se refere mais à sobrevivência após a morte.
A ideia de Alma vai-se precisando e mesmo purificando à medida que os vários termos usados para se lhe referir pretendem descrever mais o 'duplo' (fantasma) próprio de cada um dos homens do que um indiferenciado princípio vital."


Logos

o retrato (da tragédia) de Dorian Gray

- Não existem boas influências, Mr. Gray. Todas as influências são imorais, imorais de um ponto de vista científico.
- Porquê?
- Porque influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa própria alma. O indivíduo deixa de pensar com os seus próprios pensamentos ou de arder com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é que existe tal coisa, são tomados de empréstimo. Torna-se o eco de uma música alheia, o actor de um papel que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total percepção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. Hoje em dia as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram o maior de todos os deveres, o dever para consigo mesmo. É verdade que são caridosas. Alimentam os esfomeados e vestem os pobres. Mas as suas próprias almas morrem de fome e estão nuas. O temor à sociedade, que é a base da moral, e o temor a Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam. E todavia...(...)
E todavia, acredito que se um homem vivesse a sua vida plenamente, desse forma a cada sentimento, expressão a cada pensamento, realidade a cada sonho, acredito que o mundo beneficiaria de um novo impulso de energia tão intenso que esqueceríamos todas as doenças da época medieval e regressaríamos ao ideal helénico, possivelmente até a algo mais depurado e mais rico que o ideal helénico. Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na autonegação que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos. O corpo peca uma vez e acaba com o pecado, porque a acção é um modo de expurgação. Nada mais permanece que a lembrança de um prazer, ou o luxo de um remorso. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistirmos a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu, com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo. Mesmo o senhor, Mr. Gray, com a sua juventude de rubro rosa e a sua mocidade de branco rosa, teve paixões que o amedrontaram, pensamentos que o aterrorizaram, sonhos diurnos e sonhos dormindo cuja simples memória talvez o faça corar de vergonha...
- Pare! - balbuciou Dorian Gray. - Pare! Confunde-me. Não sei o que dizer. Há com certeza uma resposta às suas palavras, mas não a consigo encontrar. Não fale. Deixe-me pensar. Ou melhor, deixe-me tentar não pensar.



'O Retrato de Dorian Gray'
Oscar Wilde

bolas de sabão

Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça. (...) No fim, ela vence, pois desde o nascimento é esse o nosso destino e ela brinca um pouco com a sua presa antes de a comer. Mas continuamos a viver com grande interesse e inquietação durante o máximo tempo possível, do mesmo modo que sopramos uma bola de sabão até esta ficar bastante grande, embora tenhamos a certeza absoluta que vai rebentar.'




Irvin D. Yalom

medo ou paixão?

"Quando os nossos olhares se cruzaram, senti-me empalidecer. Acometeu-me uma estranha sensação de terror. Soube que deparava com alguém com uma personalidade simplesmente fascinante de tal modo que, se eu o permitisse, absorveria todo o meu ser, toda a minha alma, a minha própria arte. E eu não queria nenhuma influência externa na minha vida. (...) Tive a estranha sensação que o destino me preparava requintados prazeres e requintados desgostos. Assustei-me, e virei-me para abandonar a sala."



Oscar Wilde

imaginação

Imaginação.
É essa parte dominadora do homem, essa senhora de erro e falsidade, e tanto velhaca por não sê-lo sempre, pois seria regra infalível de verdade se o fosse infalível da mentira.(...)
Não falo dos loucos, falo dos mais sábios, e é entre eles que a imaginação tem o grande dom de persuadir os homens. Por mais que a razão proteste, não consegue valorizar as coisas.
Essa soberba potência inimiga da razão, que se compraz em controlá-la e dominá-la, para mostrar quanto pode em todas as coisas, estabeleceu no homem uma segunda natureza. (...)
Suspende os sentidos, fá-los sentir.
Tem seus loucos e seus sábios.
E nada nos despeita mais do que ver que enche os seus hóspedes de uma satisfação bem mais plena e completa que a razão. Os hábeis por imaginação satisfazem bem mais a si próprios do que os prudentes podem razoavelmente fazê-lo. Olham as pessoas com autoridade, disputam com ousadia e confiança - os outros com temor e desconfiança - e essa satisfação visível dá-lhes geralmente vantagem na opinião dos ouvintes. (...)
Quem dispensa a reputação, quem dá o respeito e a veneração às pessoas, às obras, às leis, aos poderosos, senão essa faculdade imaginativa?
Todas as riquezas da terra são insuficientes sem o seu consentimento. (...)
O maior filósofo do mundo, andando sobre uma tábua suficientemente larga, se houver abaixo um precipício, será dominado pela imaginação, ainda que a razão o convença da sua segurança. Muitos não poderiam sequer pensar nisso sem empalidecer de suor. (...)
O tom de voz impressiona os mais sábios e modifica o carácter de um discurso e de um poema.
A afeição ou o ódio mudam a face da justiça. (...seu gesto arrojado fá-lo parecer melhor aos juízes enganados por essa aparência.) (...) Pois a razão foi obrigada a ceder, e a mais sábia toma conta dos seus princípios, aqueles que a imaginação dos homens temerariamente introduziu em cada lugar.


Pascal

hope

"Às vezes, amamos apenas com a esperança. Às vezes choramos com tudo menos com lágrimas. No fundo o que nos resta: o amor e a sua responsabilidade, a tristeza e a sua verdade. No fundo o que nos resta: aguentar até ao amanhecer."


Shantaram*

'coincidências'

"...não se trata de acreditar ou não acreditar nas coincidências. O mundo inteiro é uma coincidência. Tive um amigo que me dizia que eu estava enganado ao pensar desta maneira. O meu amigo dizia que para alguém que viaja num comboio o mundo não é uma coincidência, mesmo que o comboio esteja a atravessar territórios desconhecidos para o viajante, territórios que o viajante nunca mais irá voltar a ver na sua vida. Também não é uma coincidência para o que se levanta às seis da manhã morto de sono para ir para o trabalho. Para aquele que não tem outro remédio senão levantar-se e acrescentar mais dor à dor que já tem acumulada. A dor acumula-se dizia o meu amigo, isso é um facto, e quanto maior for a dor menor a coincidência.
- Como se a coincidência fosse um luxo - perguntou Morini.
- A coincidência não é um luxo, é a outra face do destino e também algo mais - disse Johns.
- Mais o quê? - perguntou Morini.
- Algo que escapava ao meu amigo por uma razão muito simples e compreensível. O meu amigo (talvez seja uma presunção da minha parte chamar-lhe ainda assim) acreditava na Humanidade, portanto, acreditava na ordem, na ordem da pintura e na ordem das palavras, pois a pintura não se faz com outra coisa. Acreditava na redenção. No fundo até é possível que acreditasse no progresso. A coincidência, pelo contrário, é a liberdade total a que estamos condenados pela nossa própria natureza. A coincidência não obedece a leis e se lhes obedece nós desconhecemo-las. A coincidência, se me permite a comparação, é como Deus que se manifesta em cada segundo no nosso planeta. Um Deus incompreensível com gestos incompreensíveis dirigidos às suas criaturas incompreensíveis. Nesse furacão, nessa implosão óssea, realiza-se a comunhão. A comunhão da coincidência com os seus rastos e a comunhão dos seus rastos connosco."


Roberto Bolaño
2666

oferta + procura + magia

"E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica mas também é sexo, e bruma dionisíaca e jogo. E depois Ieltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância. (...) Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algibeira e dizia:
- Creio que está na hora de beber um copinho."



(in 2666)

estrelas ou metáforas

"Por vezes, consoante a forma como a víssemos, disse ele, essa questão tinha pouca importância, pois as estrelas que vemos de noite vivem no reino da aparência. São aparência, da mesma forma que os sonhos são aparência. (...) Na realidade, quando falamos de estrelas, é em sentido figurado. Isso chama-se metáfora. Uma pessoa diz: é uma estrela de cinema. Está a falar com uma metáfora. Uma pessoa diz: o céu está coberto de estrelas. Mais metáforas. Se derem um murro nos queixos a uma pessoa e a deixarem KO, diz-se que ele viu estrelas. As metáforas são a nossa maneira de nos perdermos nas aparências ou de ficarmos imóveis no mar das aparências. Nesse sentido, uma metáfora é como um salva-vidas. E não devemos esquecer que há salva-vidas que flutuam e salva-vidas que vão a pique ao fundo. Convém nunca esquecer isso. A verdade é que só há uma estrela e essa estrela não é nenhuma aparência nem uma metáfora nem surge de nenhum sonho ou pesadelo. Têmo-la lá fora. É o Sol. Essa é, para nossa desgraça, a única estrela. (...) uma estrela enlouquecida na imensidão do espaço."


2666

...porque somos movimento...

"Havia tanto tempo perdido em ti, eras o esboço daquilo que poderias ter sido debaixo de outras estrelas. O molde oco sou eu. Tu tremias, pura e livre como uma chama, como um rio de mercurio, como o primeiro canto de um passaro quando a alvorada desponta, e sabe bem dizer-to com estas palavras que te fascinavam porque pensavas que elas nao existiam a nao ser em poemas e que nao as podíamos usar.
Onde é que tu estás, onde estaremos nós a partir de hoje, dois pontos num universo inexplicável, próximos ou afastados um do outro, dois pontos que criam uma linha, que se afastam e aproximam de forma arbitrária, mas nao te vou explicar isso a que chamam os movimentos brownianos, é claro que nao te vou explicar isso, mas no entanto nós os dois desenhamos uma figura, tu és um ponto em qualquer parte e eu noutra, ambos em movimento, tu agora talvez na rue de lha huchette e eu no teu estudio vazio a ler este romance, e amanha tu na gare de lyon e eu na rue do chemin vert, onde descobri um vinho extraordinario, e pouco a pouco, vamos construindo uma figura absurda, desenhando com os nossos movimentos uma figura idêntica à que duas moscas fazem quando voam numa sala, daqui para ali, de trás para a frente, para cima, para baixo, espasmodicamente, travando no ar, travando o ar, e arrancando noutra direcção no mesmo instante, e esses movimentos vão formando um desenho. Uma figura. Qualquer coisa de inexistente como tu e como eu, como dois pontos perdidos em paris que vao de cá para lá, de lá para cá, fazendo o seu desenho, dançando como ninguém, para ninguém, nem sequer para eles mesmos, uma figura interminável e sem sentido."

O Jogo do Mundo*
Julio Cortázar


uma boca escolhida entre todas as bocas

....'...Toco na tua boca. Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo se desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da minha mão que te desenha.
Olhas-me de perto, cada vez mais de perto, (...e então brincamos aos ciclopes!), os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se! E os ciclopes olham-se respirando confundidos! ....as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios...a dor é doce! E afogamo-nos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego....e essa morte instantânea é bela....'...


Cortázar

jean genet

"Não se aborda uma obra de arte como se aborda uma pessoa, um ser vivo ou outro fenómeno natural. Poema, quadro, estátua, exigem exame com um número de qualidades preciso.

Nenhum rosto vivo facilmente se revela, e contudo basta um pequeno esforço para descobrir-lhe o significado.

O importante é isolá-lo. Só quando o meu olhar o destaca de tudo em redor, só quando o meu olhar impede esse rosto de se confundir com o resto do mundo evadindo-se numa infinitude de significações cada vez mais vagas, obtenho a necessária solidão pela qual o meu olhar o recorta do mundo.

Nós que olhamos para a compreendermos e sermos por ela tocados.

O que interessa é o que a tela deve representar. Aquilo que eu pretendo decifrar nessa solidão é simultaneamente a imagem sobre a tela e o objecto real por ela representado. O primeiro passo é isolar o quadro do seu significado de objecto e então a imagem sobre a tela estabelece ligações com a minha experiência do espaço, com o meu conhecimento da solidão dos objectos, dos seres e dos acontecimentos.

Quem nunca ficou maravilhado com tal solidão nunca conhecerá a beleza da pintura. Se disser o contrário, mente.

Na origem da beleza está unicamente a ferida, singular, diferente para cada qual, escondida ou visível, que todos os homens guardam dentro de si, preservada, e onde se refugiam ao pretenderem trocar o mundo por uma solidão temporária mas profunda."


O Estúdio de Alberto Giacometti


blues

".....between midnight and dawn, baby we may ever have to part, but there's one thing about it, baby, please remember I've always been your heart....

Well it's blues in my house, from the roof to the ground,
And it's blues everywhere since my good man left town.
Blues in my mail-box, cause I can't get no mail,
Says blues in my bread-box 'cause my bread got stale.
Blues in my meal-barrel and there's blues upon my shelf,
And there's blues in my head, 'cause I'm sleepin' by myself.


.....e depois a chama do trompete, o falo amarelo a romper no ar e a desfrutar com os seus avanços e recuos sucessivos, e três notas ascendentes quase no final, hipnóticas, de ouro puro, uma pausa perfeita onde todo o swing do mundo dançava num instante insuportável, e então a ejaculação de um agudo que escorrega e que acorda, que cai como um foguete na noite sexual, a mão de Ronald a acariciar o pescoço de Babs e o crepitar da agulha enquanto o disco continua a rodar e o silêncio que existe em toda a música se desencosta lentamente das paredes, saindo de debaixo do divã, abrindo-se como uma realidade que não conseguimos agarrar, uma liberdade que diz tudo sem palavras e que extasia, porque o êxtase não é mais do que isso, música......"


Cortázar


....'...Tu também és feita de giz?...'....

....'... Só termina realmente aquilo que se recomeça cada manhã.
As pessoas deitam moedas sem saberem que estão a ser roubadas, porque a verdade é que estes quadros nunca se apagam. Mudam de passeio ou de cor, mas já estão feitos na mão, na caixa do giz, num sistema astuto de movimentos. Homenagem ao efémero, ao facto de aquela catedral ser um simulacro de giz que um balde de água lavará num segundo. Pagamos a imortalidade, a duração. Tu também és feita de giz?

Um mundo de giz e de cor rodava em torno deles, integrando-os na sua dança, batatas fritas de giz amarelo, vinho de giz arroxeado, um pálido e doce céu de giz azul-celeste com tons esverdeados nas proximidades do rio. A rua Dauphine de giz cinzento, as escadas de giz pardo, um quarto em tons de giz verde claro, as cortinas de giz branco, a cama com o poncho onde o giz gritava, o amor, os seus paus de giz sedentos de um fixador que os guardasse no presente, amor de giz perfumado, boca de giz cor-de-laranja, tristeza, e tanta falta de cor no giz a rodar num pó imperceptível, pousando-se sobre as faces adormecidas, sobre o giz agoniado dos corpos.

- Tudo se desfaz quando lhe tocas, até mesmo quando olhas - disse Pola. - És como um ácido terrível, tenho medo de ti.

- Tu dás demasiada importância às minhas metáforas.

- Não é apenas aquilo que tu dizes, é uma maneira de...Não sei, é como um funil. Às vezes tenho a sensação que vou escorregar dos teus braços e cair num poço. É pior do que quando se sonha que se está a cair no vazio.

(...)
- Tenho medo de ti, monstro americano. Tinhamos decidido que em minha casa não se falava de...

- De giz às cores.

- De todas essas coisas. ....'......



Cortázar


Absurdo

....'....o que nós não entendemos é a razão pela qual isso tem de acontecer dessa forma, porque é que nós estamos aqui e lá fora está a chover. O absurdo não são as coisas, o absurdo é que elas estejam aí e nós as sintamos como absurdas. A relação que existe entre mim e isto que me está a acontecer neste momento escapa-se-me. Não nego que esteja a acontecer. Está, pois, como. E isso é que é absurdo.....'.....



Rayuela, Cortázar

lendas

....'.....As antigas lendas de Sânscrito falam de um amor predestinado, uma conexão de Karma entre almas que estão destinadas a encontrar-se e colidir e arrebatar-se uma à outra. As lendas dizem que a pessoa amada é reconhecida imediatamente porque é amada em cada gesto, cada expressão de pensamento, cada movimento, cada som e cada expressão dos seus olhos. As lendas dizem que a conhecemos pelas asas - as asas que só nós podemos ver - e porque desejá-la destrói a vontade de amar qualquer outra pessoa.....'......


Gregory David Roberts


'Uma noite em Hong Kong ou o 6º poema do português errante'

Há nas baías das grandes cidades uma ausência aflita
brilha nas ruas dos arranha-céus reflectidas nas águas tristes
e todos os navios têm o teu rosto cosmopolita
o teu rosto imprevisto chegado do país onde existes e não existes.

Em Hong Kong S. Francisco Amesterdão Nova Iorque
há uma espécie de nostalgia uma viragem uma aragem
melancolia é o teu nome talvez porque
estás quase para chegar e como sempre de passagem.

Tão de passagem que ninguém pode encontrar-te
senão por um acaso ao virar da esquina um olhar
tu és a alma das metrópoles estás em nenhures e toda a parte
e todas as cidades têm o teu rosto de mulher.

E há em todos os centros uma branca aflição
um roçagar de mármore que me toca
um pavor do vazio ó beijo da solidão
esta noite tem o sabor da tua boca.

É então que te sofro: tu és parte de mim que se me escapa
vais nos navios cintilas nos arranha-céus
o teu país não cabe em nenhum mapa
tu és do mundo e estás em mim como um adeus.

As luzes brilham na baía e sinto a grande urgência
nos terraços da noite onde o acaso se esconde
Eu sou eu mesmo a tua ausência
e o teu lugar é onde não há onde.

Nos corredores do vento onde perpassa o grande impulso
nos ângulos de gelo que pairam sobre a insónia
o coração das metrópoles bate no meu pulso
e todos os exílios começam em Babilónia.

Chegam os grandes frios e as lâminas do olvido
e todos os espelhos estão vazios
no livro do silêncio há um deus desconhecido
e eu pergunto por ti outra vez sentado sobre os rios.


M. Alegre

(Escre)Ver-me...

nunca escrevi

sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar



Mia Couto

Isto.

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
E estas pregas na alma
Se ao menos endoidecesse de vez!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.


FP


Um girassol com a cara dela no meio

...'...um girassol com a cara dela no meio...'....

by Teresa Rolla on Monday, May 10, 2010 at 3:03pm
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como
um girassol com a cara dela no meio.


(F Pessoa)

um mundo do ossevA !

...convencida como eu de que um encontro casual era a menor casualidade das nossas vidas e que as pessoas que marcam encontros a horas precisas são as mesmas que necessitam de papel pautado para escreverem ou que apertam o tubo da pasta de dentes desde o fundo...

...andávamos sem nos procurarmos, mas sabendo que andávamos para nos encontrarmos...

...mais tarde acreditei em ti, mais tarde houve razões para isso, houve madame Léonie que, ao ler a mão que tinha dormido sobre os teus seios, quase repetiu as tuas palavras. "Ela sofre algures, sempre sofreu. É muito alegre, adora o amarelo, o seu pássaro é o melro, a sua hora é a noite, a sua ponte a Pont des Arts."...

...ainda mal nos conhecíamos e a vida urdia o necessário para nos desencontrar minuciosamente...

...num mundo-Maga que era a falta de jeito e a confusão...

...e íamos de bicicleta para Montparnasse, para qualquer hotel, para qualquer almofada...

...tinha falado com a Maga de patafísica até à exaustão, porque a ela também lhe acontecia (e o nosso encontro era isso e tantas coisas obscuras como o fósforo) cair continuamente nas excepções, ver-se metida em contextos que não eram os de toda a gente...

...sei o que isso é porque também obedeço a esses sinais, também há alturas em que me toca a mim encontrar pano vermelho...

...a desordem em que vivíamos, isto é, a ordem segundo a qual um bidé se vai convertendo natural e paulatinamente em arquivo de discos e de correspondência por responder...

...era idiota revoltar-me contra o mundo Maga quando tudo me dizia que assim que recuperasse a minha independência deixaria de sentir-me livre...

...o peso do sujeito na noção de objecto...

...pelo chão ou no tecto, por baixo da cama ou a flutuar numa bacia, havia estrelas e pedaços de eternidade...

...ninguém aguenta aqui muito tempo, nem sequer tu e eu, é preciso lutar para viver, é a lei, é a única maneira que vale a pena mas dói, Rocamadour, e é sujo e amargo, tu não ias gostar...

...sim, existem rios metafísicos, e ela nada neles....

...Ah, deixa-me entrar, deixa-me ver um dia como os teus olhos vêem....


Cortázar

Um corpo escolhido entre todas as línguas

Aquilo que eu gosto no teu corpo é o sexo.
Aquilo que eu gosto no teu sexo é a boca.
Aquilo que eu gosto na tua boca é a língua.
Aquilo que eu gosto na tua língua é a palavra.





Júlio Cortázar

 

A volta ao mundo em oitenta noites

Noite... Noite encantada, dolorosa... Noite louca, mágica e doida... Ainda noite... Noite que nunca parece acabar. Noite que, pelo contrário, às vezes passa muito depressa.

Noite, noite profunda, noite de sabores...

Noite... Um trânsito leve e lento, o qual sabe-se lá para onde se dirige. Para novas histórias, uma nova solidão escondida num grupo, um desejo frenético e louco de voltar a ver alguém. Noite...

Noite de nuvens e vento; noite leve; noite quente; noite de folhas que dançam alegremente; noite diferente; noite de Lua.

Noite de palavras; noite de lembranças e confissões; de anedotas divertidas e passadas. Velhas histórias que só a mágoa, às vezes, com um sopro poderoso, traz à luz. Acontecimentos passados, escondidos, perdidos.

Noite... Noite profunda... Noite de surpresas... Noite absurda...

Mais uma noite, uma noite profunda... Noite de gente alegre... Noite de luzes, sons, buzinas e farra... Noite que acaba cedo demais. Noite que nunca passa.

Noite... Noite de nuvens, noite escura, noite malandra...

Depois, uma noite, aquela noite... E de repente, voltas a viver.


(F. Moccia)


....'....a heart whose love is innocent!....'.....

 She walks in beauty, like the night
Of cloudless climes and starry skies;
And all that 's best of dark and bright
Meet in her aspect and her eyes:
Thus mellow'd to that tender light
Which heaven to gaudy day denies.
One shade the more, one ray the less,
Had half impair'd the nameless grace
Which waves in every raven tress,
Or softly lightens o'er her face;
Where thoughts serenely sweet express
How pure, how dear their dwelling-place.

And on that cheek, and o'er that brow,
So soft, so calm, yet eloquent,
The smiles that win, the tints that glow,
But tell of days in goodness spent,
A mind at peace with all below,
A heart whose love is innocent!

Lord Byron


 

Problemas Embrulhados (parte II)

As mulheres, em quem a vida permanece e se detém mais de imediato, com mais fruto e mais confiança, tornaram-se sem dúvida as pessoas fundamentalmente mais maduras, mais humanas do que o homem descontraído, que é puxado abaixo da superfície da vida pelo peso do fruto do seu corpo e, que, presumido e apressado, subestima o que pensa que ama.

Esta humanidade da mulher nascida do sofrimento e da humilhação, verá a luz do dia quando se libertar das convenções meramente femininas na mudança da sua condição, e os homens que não a sentem ainda chegar serão surpreendidos e abalados por ela.

Este processo irá mudar a experiência do amor, agora tão cheia de enganos, irá mudá-la de cima abaixo, e transformá-la numa relação destinada a ser de um ser humano com outro, e não mais de homem e mulher. E este amor mais humano (que se realizará infinitamente gentil e atencioso e generoso e claro em unir e libertar) será semelhante àquele que nós preparamos, com luta e esforço, o amor consiste nisto: dois seres sós que se protegem, se encontram e se respiram um ao outro.

E falando novamente de solidão, torna-se sempre claro que no fundo não se trata de algo que possamos querer ou não. Nós somos solitários. Podemos iludir-nos e agir como se isto não fosse verdade. E é tudo.

Temos de assumir a nossa existência o mais amplamente possível: tudo, até mesmo o impensável, tem de ser possível. No fundo é esta a única coragem que nos é pedida; ter coragem para o mais estranho, o mais singular e o mais inexplicável que possamos encontrar.

Pois não é apenas a inércia a responsável pela repetição nas relações humanas, indicritivelmente monótonas e iguais; é a timidez perante qualquer tipo de experiência nova e imprevisível com a qual não nos sentimos capazes de lidar. Mas só alguém que está pronto para tudo, que não exclui nada, nem mesmo a coisa mais enigmática, viverá a relação com o outro como algo vivo e sairá ele próprio da sua existência.

Aquilo que é fundamental é o encontro entre dois seres. Um encontro infinito entre dois seres. A isso se chama o amor. O que é o amor senão o encontro entre duas solidões?!


Rainer Maria Rilke

Problemas Embrulhados (parte I)

Nós sabemos pouco, mas que nos devemos agarrar ao que é difícil é uma certeza que não nos abandonará; é bom ser sozinho pois a solidão é difícil; se algo é difícil, maior a razão para o fazermos.

Amar é bom, também, sendo o amor difícil. Pois um ser humano amar outro é talvez a nossa tarefa mais difícil, a última, a última prova ou teste, a obra para a qual todas as outras não passam de ensaios. Por esta razão os jovens, que são principiantes em tudo, não podem conhecer o amor: têm de o aprender. Com todo o seu ser, com todas as suas forças, unidos à bvolta do seu coração sozinho, tímido e acelerado, têm de aprender a amar.

O amor não é no início algo que precise de fusão, de entrga, de união com outro, é um forte indício do amadurecimento do indivíduo, que se torna algo dentro de si, que se torna mundo, que se torna mundo para si em função do outro, é uma grande exigência sobre o outro, algo que faz dele a escolha e o chama para muitas coisas.

Mas os jovens erram com tanta frequência e com tanta gravidade nisto: que eles, de cuja natureza faz parte a impaciência, atiram-se uns aos outros, quando o amor deles se apropria, espalham-se tal como são, com toda a sua desorganização e confusão... E depois? O que deve fazer a vida a este monte de existências meias baralhadas que eles chamam comunhão e que de bom grado eles chamariam felicidade, e se possível o seu futuro? (Talvez o nome correcto seja botes salva vidas.)

São questões, questões íntimas entre um ser humano e outro, que em qualquer caso exigem uma resposta nova, especial e pessoal; mas como podem eles, que já se misturaram e que não se distinguem uns dos outros e, por conseguinte já nada possuem de si próprios, serem capazes de encontrar uma saída na profundidade da sua solidão já feita em pedaços?

Quem olhar para isto de forma séria descobre que nem para a morte, nem para o amor, existe qualquer explicação, qualquer solução, qualquer pista que ainda possa ser explicada; e para estes dois problemas que trazemos embrulhados e entregamos sem os abrir, não é possível descobrir uma regra geral baseada no consenso.

Mas se, no entanto, aguentarmos e tomarmos este amor como um fardo e uma aprendizagem, em vez de nos perdermos num papel frívolo e superficial, atrás do qual as pessoas se têm escondido desde os primórdios da sua existência - então um pequeno progresso e uma esperança serão talvez perceptíveis.


Rainer Maria Rilke

Equações (i)lógicas !

- És demasiado preciso. Controlas tudo. O que fazemos agora, para onde vamos, porquê... Mas porque é que fazes isso? Porque é que queres controlar tudo? És um contabilista das emoções, um castigador das loucuras, um calculador das casualidades... A vida não pode ser reduzida a simples cálculos. Em que trabalhas?

- Sou criativo.

- E como consegues criar, se destróis e sufocas o imprevisto? A criação surge de um relâmpago, de um erro em relação à ordem natural das coisas. Nunca fazemos bem alguma coisa se não deixarmos de pensar no modo de a fazer.


F.Moccia