terça-feira, 22 de novembro de 2011

Bertolt Brecht - Perguntas a Um Homem Bom

Avança: ouvimos
dizer que és um homem bom.
Não te deixas comprar, mas o raio
que incendeia a casa, também não
pode ser comprado.

Manténs a tua palavra.
Mas que palavra disseste?
És honesto, dás a tua opinião.
Mas que opinião?
És corajoso.
Mas contra quem?
És sábio.
Mas para quem?
Não tens em conta os teus interesses pessoais.
Que interesses consideras, então?
És um bom amigo.
Mas serás também um bom amigo de gente boa?

Agora escuta: sabemos
que és nosso inimigo. Por isso
vamos encostar-te ao paredão. Mas tendo em conta os teus méritos
e boas qualidades
vamos encostar-te a um bom paredão e matar-te
com uma boa bala de uma boa espingarda e enterrar-te
com uma boa pá na boa terra.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Nuno Júdice, A Vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.


Nuno Júdice, in "Teoria Geral do Sentimento"

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

patti smith - alguns de nós nascem rebeldes

" alguns de nós nascem rebeldes. lembro-me de passear com a minha mãe pelas montras e lhe perguntar porque é que as pessoas não as partiam. ela explicou-me que existem regras tácitas de comportamento social, e que era assim que nós coexistíamos como povo. senti-me instantaneamente limitada pela noção de que nascemos num mundo em que tudo foi já ordenado antes de nós. eu esforçava-me por suprimir os impulsos destrutivos, trabalhando em vez disso os impulsos criativos. mesmo assim, aquele pequeno ódio às regras que havia em mim não morrera. "

huxley - A Inconsistência Humana

Que todos os homens são iguais é uma proposição à qual, em tempos normais, nenhum ser humano sensato deu, alguma vez, o seu assentimento. Um homem que tem de se submeter a uma operação perigosa não age sob a presunção de que tão bom é um médico como outro qualquer. Os editores não imprimem todas as obras que lhes chegam às mãos. E quando são precisos funcionários públicos, até os governos mais democráticos fazem uma selecção cuidadosa entre os seus súbditos teoricamente iguais.
Em tempos normais, portanto, estamos perfeitamente certos de que os Homens não são iguais. Mas quando, num país democrático, pensamos ou agimos politicamente, não estamos menos certos de que os Homens são iguais. Ou, pelo menos - o que na prática vem ser a mesma coisa - procedemos como se estivéssemos certos da igualdade dos Homens.
Identicamente, o piedoso fidalgo medieval que, na igreja acreditava em perdoar aos inimigos e oferecer a outra face, estava pronto, logo que mergia novamente à luz do dia, a desembainhar a sua espada à mínima provocação. A mente humana tem uma capacidade quase infinita para ser inconsistente.

Aldous Huxley, in "Sobre a Democracia e Outros Estudos"

patti smith

' nos meus períodos de quebra, punha-me a pensar para que é que servia criar arte. a quem se destinava? estaremos a animar Deus? estaremos a falar para nós mesmos? e qual era o derradeiro objectivo? termos a nossa obra enjaulada nos grandes jardins zoológicos do mundo das artes - o Modern, o Met, o Louvre? '

chelsea hotel, NY

" O hotel é um enérgico e desesperado ponto de abrigo para imensas crinças dotadas e carentes saídas de todos os níveis da escala. Vagabundos com guitarras e beldades pedradas trajando vestidos vitorianos. Poetas junkie, dramaturgos, cineastas sem tostão e actores franceses. Toda a gente que passa por aqui é alguém, mesmo que não seja ninguém no mundo lá de fora.

A vida no Chelsea era uma feira franca, onde toda a gente tinha algo de si para vender. Toda a gente tinha algo para oferecer e ninguém parecia ter muito dinheiro. Até os mais bem sucedidos pareciam dispor apenas do suficiente para poderem viver como vagabundos extravagantes.

Havia rumores de que as malas do Oscar Wilde continuariam a repousar algures na cave, que muitas vezes se inundava. Fora ali que Dylan Thomas, alagado de poesia e de ácool passara as suas últimas horas. Que o Thomas Wolfe lavrara centenas de páginas do manuscrito que viria a constituir You Can't Go Home Again. O Bob Dylan tinha composto a "Sad-Eyed Lady of the Lowlands" no nosso piso.

Toda a gente escrevera, conversara e convulsionara naqueles quartos de casa de bonecas vitoriana. Tantas saias haviam roçado aqueles degraus de mármore já gastos. Tantas almas em trânsito se haviam ali desposado, deixado marcas e sucumbido. Eu cheirava os espíritos deles enquanto saltitava silenciosamente entre um andar e outro.

O Gregory Corso, o Allen Ginsberg e o William Burroughs foram todos eles meus professores, e todos eles cruzaram o átrio do Hotel Chelsea, a minha nova universidade. "


Patti Smith
NY, 1969/70

baudelaire - contradizer-se

"Na declaração dos direitos do homem esqueceram-se de incluir o direito a contradizer-se."

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Alberto Caeiro

' pensar incomoda como andar à chuva . '

just kids - nascidos à 2ª feira .

' ... hoje era segunda-feira; eu nascera numa segunda feira. era um bom dia para chegar a nova iorque. ninguém me esperava. toda a gente me aguardava. '

pedro paixão - a rapariga errada

' sim, estou um bocadinho apaixonada, ou muito apaixonada, ou terrivelmente apaixonada. isso não sei. só se sabe depois. depois de tudo acabar. mesmo o mais belo amor. o futuro tem nome de morte. '

Baudelaire, La voix.

"Eu rio-me nos funerais e choro nas festas
e encontro um gosto suave no vinho mais amargo;
com frequência tomo os factos por mentiras
e, de olhos postos no céu, caio em buracos.
Mas a voz consola-me e diz-me: «Guarda os teus sonhos;
os sábios não os têm tão belos como os loucos.»

Baudelaire,
La voix.

a resposta de Proust à iminência de um cataclismo !

(...)
Julgo que se recaísse sobre nós uma ameaça de morte, como referiu, a vida nos pareceria subitamente maravilhosa. Imagine quantos projectos, viagens, ligações amorosas, estudos, ela - a nossa vida - esconde de nós, tornados invisíveis pela nossa preguiça que, certa da existência de um futuro, os adia incessantemente.
Porém, se tudo isto estivesse na iminência de se tornar impossível para sempre, quão maravilhoso voltaria a parecer! (Ah! se o cataclismo não ocorrer desta vez, não sentiremos falta de visitar as novas galerias do Louvre, de nos atirarmos aos pés da menina X, de fazer uma viagem à Índia...)
O cataclismo não acontece e nós nada fazemos porque estamos de novo no centro da vida normal, onde a negligência adormece o desejo. E, porém, não deveríamos precisar do cataclismo para amarmos a vida hoje. Deveria ser suficiente pensar que somos humanos e que a morte pode chegar esta noite.


Marcel Proust
L'intransigeant, verão de 1922

Baudelaire (a melancolia de Paris)

«Um olhar experimentado nunca se engana. Nesses traços rígidos e abatidos, nesses olhos cavos e ternos, ou brilhantes dos derradeiros clarões da luta, nessas rugas numerosas e profundas, nesses passos tão lentos e tão bruscos, decifro imediatamente as inúmeras lendas do amor traído, da dedicação ignorada, dos esforços não recompensados, da fome e do frio humildemente, silenciosamente suportados.» 
Charles Baudelaire, “A Melancolia (Spleen) de Paris”, Lx., Rel. D’Água, 2007, p. 41