domingo, 3 de abril de 2011

espasmo sagrado das palavras...

Existia alguma coisa para denominar no alto desta sombria
masculinidade. Era talvez um cego escorrer
de sangue pelos anéis e flores do corpo.
Sei unicamente que era a força da tristeza, ou a força
da alegria da minha vida.

Havia tembém outra coisa a que se deveria dar
um nome belo e lento. Algo que se cercava de lágrimas
como uma árvore se vai cercando de folhas
inúmeras. Tudo isso começava
a aparecer nas vozes e inspirações como uma ardente
confusão. Depois, este vagarosa acender
da noite. O sangue despenhava-se
nas lagoas e grutas da carne. Hoje eu sabia
que era a tristeza, a tristeza - um poder
mais jovem que os demais.

Lá estariam sempre as grandes arcadas de fogo,
as portas, a loucura das pontes celestes.
Havia uma espécie de vocação implorativa, a doçura
do corpo subtilmente preso por crateras e picos
ao tumulto das sombras.

Eu baixava-me e tomava como nos braços
essa criança ignota.
E porões enchiam-se de água, eu seria em breve
um afogado. Tudo me inspirava
nessa noite abrupta, entre o começo e o fim
do mundo. Como pode um coração absorver
tanta matéria, tanta inocência da terra?
Apenas a minha força se dobrava um pouco,
e um novo calor corria nas palavras adormecidas
e delegava as mãos que se cobriam
de um sentido impenetrável.

e era uma espécie de retrato sem névoas, um eixo, um grito,
uma louca morte,
um espasmo violento e sagrado das palavras.

Herberto Helder

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