quarta-feira, 25 de março de 2015

Herberto Helder - Brandy


Brandy. Encha o copo. Assim, até cima. Obrigado. Sabe que tive infância? Claro, não sou um sentimental. Pensa que disponho assim de desafogos morais, luxos do espírito, remansos culturais burgueses, para entregar-me a libertinagens da emoção? Tive infância, só isso. Ou seja: falta de jeito, indecisão, uma grande ignorância. Olhava para as coisas: eram fundas, enigmáticas, desorientadoras. Tudo estava cheio, porque o meu coração ávido tudo recebia: era um espaço palpitantemente vazio. Agora não, agora estou cheio de pessoas, lugares, acontecimentos, ideias, decisões. E tudo me parece deserto. Não, voltar à infância, isso nunca. Sofre-se. O mundo é grande. E há tanta curiosidade e paixão, tanta ignorância. Doloroso. Espera-se, está-se nas coisas, cegamente imiscuído nelas. Que angustiosa, esta voracidade, esta fusão analfabeta com a instável matéria do mundo! Agora sou inteligente. Existo. Existe o universo. Duas realidades distintas, inimigas, inúteis. Sim, deite mais brandy. Sou bêbado, claro. Que esperava? Que fosse um apóstolo, um assassino, um político, um anjo? Não, sou apenas um bêbado. [...]

Também já tive amor. O que não teve gente neste universo tão pródigo? Era arrebatador. Eu via as casas, as ruas, os rostos, os animais que os homens acariciam, esse maravilhoso vagar da terra, e ficava estupefacto, fulminado. Gritava para mim próprio: é um milagre, o milagre! Tão estúpido, tão forte e cheio de poderes! Criava a linguagem; estava continuamente acordado; descobria, diante da matéria interrogada, figurações, modelos, réplicas. Enfim, uma pessoa insuportável. Inquietava o mundo inteiro com a minha deslumbrada inépcia. Todas as noites inventava as mulheres, uma grande mulher perfeita, a mestra da loucura. Alimentava-me disso apenas, de loucura. Nada mais. Depois propus-me achar, para louvor dos mistérios, formas concretas e duráveis de beleza. Formas no espaço, arrancadas à substância dos dias, sólidas, presentes, com que esbarrássemos nas ruas. Arte. Condensação. Irrefutável secularização das visões secretas e fugitivas. Escrevi poemas sobre as vozes, as luzes, as metamorfoses, as imagens e equivalências do mundo. E fui por aí fora: filosofia, ciência, estética. Desejava conhecer tudo, abrir os enigmas. Às vezes deixava-me estar sob a chuva a senti-la correr pela cabeça e as mãos, encharcar-me o fato, entrar na carne. Murmurava: é a chuva. Ficava extasiado, louco de dedicação por esta terra feroz e sumptuosa que eu nunca entendia bem. Depois tudo foi desaparecendo. Uma noite, só, sentado num quarto vazio, subitamente compreendi. [...]

Quanto à alma, considere, é uma alma. Isto nos meus olhos, não se surpreenda, são lágrimas. O meu modo de reconhecer a bebedeira. Comoção? O chão a aluir dentro de mim? O súbito terror na carne? Fala-me agora da morte como se fosse uma coisa concreta. É uma simples ideia, a morte. Não iluda a os factos com a linguagem. Nunca morri. Hei-de viver até certa altura. É a vida. Quando chega essa altura, deixa de ser a vida. Então? Isto, apenas: já não é a vida. [...] Fale você agora. Fale das pessoas. Dos seus rostos, dos pés cobrindo a terra de uma ponta à outra, de um calor mutuamente transmitido, um calor áspero, vagaroso, embriagador. Fale mais, sempre, sempre. Como fazem elas? Movem-se, não é? Sorriem. Dizem palavras antigas, acendem luzes, beijam-se no interior das noites enormes. E deitam-se com os corpos uns contra os outros. Talvez por medo? Bem. Que ganham com tudo isso? Não, não ligue importância. Não era isto que eu queria dizer. Quem fala em perder ou ganhar? 

Pare de falar nas pessoas. Que são as pessoas? São eu? Soa mal. A expressão está conforma à gramática? São eu. Curioso. Estilisticamente...  Claro, já me encontro bêbado bastante para poder dormir. Exactamente: dormir. 



Brandy - Os passos em volta,
Herberto Helder